Cartografia para uma retomada ancestral


Assim como o "Campo dos Bugres", atual Caxias do Sul, foi e talvez ainda seja local de passagem para diferentes tribos indígenas nômades, repercuto essas andanças nessa proposição performática que se configura em uma retomada ancestral.

Observo que caminhar é considerado, por muitas pessoas como uma “perda de tempo”, por isso, evita-se essa prática no meio urbano. Para mim, caminhar é algo muito instintivo, pois procuro cotidianamente fazer alguns percursos para passear com minha companheira canina ou para me deslocar em  compromissos diários de médias distâncias. Em diversos momentos da minha vida também senti a necessidade de percorrer distâncias maiores, com amigos ou sozinha. Para além de atender a demanda de chegar a algum lugar, me proporciona um estado de contemplação meditativa diante das paisagens, ao observar minuciosos acontecimentos entre os passantes ou simplesmente sentir o ar vibrando ao redor.

Como trajeto dessa performance intitulada: Retomada ancestral, parti do porão da casa dos meus avós em direção ao litoral norte, região em que atualmente eles residem. A ideia era seguir nessa direção, tendo como final do percurso, uma cabana de campo de uma das amigas mais antigas da minha avó, localizada no município de Apanhador. A escolha por parar nesse local se deu em virtude do reconhecimento por essa amiga ter acompanhado e partilhado muitos desafios na criação dos filhos e fortalecimentos das famílias junto à minha avó. Eu as considero matriarcas das famílias.

Ao total seriam 36Km, uma média de sete horas e meia de caminhada. Nesse trajeto, além de algumas avenidas centrais, segui duas rodovias principais: a BR-116 e a Rota do Sol. Ao seguir em caminhada pela BR 116, minha percepção estava aberta aos múltiplos estímulos visuais criados no meio urbano: casas, pontos de referência comerciais, placas publicitárias, pixos e elementos orgânicos nativos adaptados à realidade do asfalto. À medida que seguia a Rota do Sol, os estímulos visuais “fabricados” iam desaparecendo, as edificações iam ficando para trás e os campos se apresentavam mais abertos. Certamente a mata nativa sofreu com a ação humana, florestas foram desmatadas para dar lugar às pastagens e plantações. Entre a estrada e os campos, um estreito acostamento, por onde seguiria o meus passos. Também nesse percurso a velocidade dos automóveis aumentava e as cargas transportadas aparentavam mais robustas. Aos poucos ia percebendo falhas no asfalto, caminhões de sobrecarga a altas velocidades desviando de buracos, o acostamento se apresentava como lugar arriscado. Encontrei também alguns cães, gatos e até um pássaro morto pelo caminho.

Desde a concepção dessa performance, havia me conscientizando dos riscos iminentes ao passo que pensava estratégias para lidar com as situações. Levei comigo água e o telemóvel smarth para fazer registros fotográficos, localização e comunicação com a minha irmã. À medida que ia me afastando dos locais de maior movimento, ia enviando minha localização a ela. Combinei de encontrá-la a um certo horário para que também fizesse alguns registros da minha caminhada. O risco de ser abordada por “ser mulher em uma caminhada atípica” também poderia oferecer problemas e para isso também contei com o apoio de comunicação. Ela estava alerta para me encontrar  com o automóvel. Apesar dos possíveis contratempos, estava confiante de que faria um percurso tranquilo. O Sol estava radiante em meio ao inverno. Ao longo do trajeto também encontrei alguns grupos de ciclistas, que a meu ver, tornavam a paisagem um pouco mais humanizada, se comparada à presença massiva dos veículos automotivos a altas velocidades.

Segui aproveitando o momento para contemplar as paisagens, desacelerar o pensamento e entrar em processo meditativo, sem tentar racionalizar cada passo, apenas seguir em um ritmo agradável. Quando me proponho a percorrer novas rotas, percebo um desafio instigante, surpresas e admirações com o que vêm. Fiz alguns registros fotográficos visuais de pontos que instigaram a minha curiosidade, no entanto, procurei manter o ritmo para seguir adiante.

Em minha camiseta escrevi palavras que se conectam ao propósito da ação: “ninguém pode capturar as almas do nosso povo” (frente), já que elas não temem a morte” (verso). Conheci essa frase através do conhecimento do caminho sagrado associada ao rituais xamânicos ameríndios. 



Concebi essa performance como um ritual 

Data da caminhada: 10 de julho de 2021. Das 9:00 às 14:30

OBS: Fiz uma pausa pelas 13h e logo minha irmã viria ao meu encontro. Não cheguei a completar os 39Km pretendidos, fiz 25km e segui o restante do caminho de automóvel com minha irmã até a casa da amiga da minha avó. 


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